Pages

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Os desiguais

Texto do jornalista publicado na coluna na versão impressa da edição de 28 de dezembro de 2009:

Admito: o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, é corajoso. Mas a soltura do médico Roger Abdelmassih, acusado de 56 crimes sexuais, reforça a sensação de tratamentos desiguais pela Justiça, em benefício a quem tem poder financeiro.

Mendes viu (será mesmo?) os mesmos autos que magistrados viram quando mantiveram, por cinco vezes, a prisão preventiva do médico.

Foram cinco pedidos de soltura rejeitados. O processo chegou em 21 de dezembro ao STF e, dois dias depois, Mendes viu o que outros juízes não viram. Afirmou que mantê-lo preso era “antecipação de pena”.

Não pretendo emitir juízo da culpabilidade ou não do médico em relação aos crimes – não sou formado em Direito nem acumulo função de magistrado.

Porém, se manter uma pessoa presa for antecipação de pena, teríamos de liberar milhares de acusados de crimes por todo o País.

Não foi apenas esse fundamento que levou Mendes a soltar o médico: ele é primário, bons antecedentes e tem residência fixa. Mas quantos se encontram em igual situação, presos e sem bons e bem- remunerados advogados que conheçam os meandros dos tribunais superiores?

Ainda na última semana, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) suspendeu o andamento dos processos e inquéritos gerados pela Operação Satiagraha, que prendeu o banqueiro Daniel Dantas, libertado duas vezes por Mendes.

Segundo o jornalista Luís Nassif, a decisão se deu quando cotistas do fundo do banco iriam depor à Polícia Federal – sob ameaça de indiciamento, podiam explodir mais bombas em cima do banco de Dantas. Todo o trabalho da PF, MPF e da Justiça Federal, na figura do juiz Fausto Martin De Sanctis, está, provisoriamente, invalidado.

Mais uma vez, o mérito aqui não é se Dantas é culpado ou não.

O fato é que o banqueiro já foi condenado por corrupção ativa, responde por crimes de gestão fraudulenta de instituição financeira, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e formação de quadrilha, tem influência e poder financeiro. Está solto, por decisão do Supremo.

Gilmar Mendes é presidente do STF e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Já demonstrou que não deixa pressões populares imporem-se na hora de decidir. Postura corajosa e louvável.

Mas as “antecipações de pena” e garantia de direitos individuais que tanto fundamentam suas decisões deviam valer para todos.

A impressão é que, em sua gestão, esses conceitos foram solidificados, mas serviram apenas para aumentar a sensação de tratamento desigual pela Justiça e de que a corda permanece firme para quem tem condições financeiras de não deixá-la arrebentar.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

A cultura imposta

Texto do jornalista publicado na coluna na versão impressa da edição de 21 de dezembro de 2009:

Enquanto o Senado aprovou na semana passada a criação do Vale-Cultura, o prefeito Sílvio Félix enviou à Câmara Municipal projeto de lei que cria o “Cidade da Leitura”, uma iniciativa que pretende estimular ações educativas-culturais. Objetivo dos dois fundamenta-se em ampliar o acesso do trabalhador de baixa renda a produtos culturais.

O projeto da Prefeitura tem um item que chama atenção. O inciso 5 do artigo 3.º prevê a “colocação de livro, pelo menos uma vez ao ano, em cestas básicas distribuídas às famílias em situação de vulnerabilidade econômica, devidamente inscritas no Centro de Promoção Social Municipal”.

No Vale-Cultura, a empresa que aderir ao programa do governo federal – não é obrigatório, mas será oferecida renúncia fiscal – dará benefício de R$ 50 para o trabalhador gastar exclusivamente com cinema, teatro, shows, livros, CDs, DVDs, entre outros. A medida será aplicada aos trabalhadores que ganham até cinco salários mínimos.

Numa sociedade em que produtos culturais sempre foram vistos como dispensáveis, os dois projetos têm sua importância em pelo menos tentar dar maior acessibilidade à população a esses materiais. Mas ajudam a eternizar uma situação que não “cola” quando se trata de produtos culturais: a imposição.

Fazer chegar um livro a uma casa ou dar dinheiro para que se gaste em tal produto não são, por si só, estímulos à popularização de produtos culturais. Tanto que o governo federal admite que o cartão do Vale-Cultura pode ser usado para outras despesas, o que causaria um desvirtuamento total da proposta.

A exigência de leituras em escolas sempre gerou mais desconforto do que compreensão da importância do ato. Incentivos sempre devem ser dados, mas focados em despertar a iniciativa das pessoas a dar o primeiro passo.

A insatisfação de muitos no hábito de leitura geralmente se forma quando lhe é imposta uma situação. Escolas e vestibulares insistem em exigir obras complexas, como as de Machado de Assis, que, são, para os iniciantes, verdadeiros martírios exatamente devido à complexidade - não que isso seja algo que a desmereça, pelo contrário.

Os projetos de Félix e do governo federal são bons, mas, melhor que entregar um livro ou dar dinheiro para cinema, é incentivar o trabalhador a procurar produtos culturais por iniciativa própria, o que demanda também políticas públicas específicas, principalmente na área de educação.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Inversão de prioridade é inaceitável

Texto do jornalista publicado na coluna na versão impressa da edição de 14 de dezembro de 2009:

As chuvas e todos os transtornos causados a partir dela em São Paulo – e por que não em Limeira, já que houve uma morte confirmada por leptospirose? – trouxeram à tona um problema do qual o País ainda não conseguiu livrar, mesmo estando hoje sob elogios da comunidade internacional: o saneamento básico, especialmente nas áreas de risco.

Nenhum administrador público pode ser execrado por não ter considerado ou previsto os temporais como os que caíram na região metropolitana na última semana, que deixaram oito mortes.

O problema é quando se olha no planejamento do investimento dos recursos públicos. Para 2010, por exemplo, a gestão de Gilberto Kassab prevê gastar R$ 126 milhões em publicidade, contra apenas R$ 25 milhões em obras e serviços em áreas de risco.

Essa inversão de prioridades, que não é só característica de Kassab, é tão inaceitável quanto às vidas que se perderam.

A realidade, sabemos, é pior do se imagina: com o déficit histórico de moradias, avança a ocupação clandestina, especialmente em regiões onde não há infraestrutura alguma, como saneamento básico.

Como o Poder Público, de forma geral, é incapaz de evitar a manutenção dessa precariedade, as chuvas cumprem o papel doloroso de relembrar a condição terceiro-mundista do País.

Limeira não tem ocupações de alto risco como São Paulo, mas ainda tem bairros com problemas de infraestrutura.

Para piorar, a cultura de preservação ao meio ambiente ainda é um desafio. Repórteres da Gazeta que estiveram no Jardim Odécio Degan no dia da confirmação da morte de um adolescente por leptospirose constataram a excessiva presença de montes de entulhos nas ruas e áreas verdes do bairro, muitos deles alimentados pelos próprios moradores.

E, na sexta-feira, a averiguação de fezes de rato em praticamente todas as casas visitadas no bairro reforça a sensação de intervenção urgente, em nome da saúde pública.

Os efeitos nocivos da imprudência da população se potencializam nesta época. O verão nem começou e as chuvas já batem recordes no Estado, o que exigirão um trabalho reforçado do Poder Público para inibir a proliferação de doenças típicas da época, como a dengue, e das provenientes das águas, como a leptospirose.

Cabe à população colaborar para minimizar os efeitos de tanta água, mas, principalmente, cabe ao Poder Público a tarefa de melhorar a infraestrutura das regiões de risco, sejam elas regularizadas ou não.

Publicidade pode – e deveria – ficar sempre para depois.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

O que roda a engrenagem

Texto do jornalista publicado na coluna na versão impressa da edição de 7 de dezembro de 2009:

O silêncio, na semana passada, da voz inconfundível da TV que marcou presença durante décadas nos lares brasileiros, foi, talvez, a primeira vez que Lombardi, locutor dos programas do apresentador Sílvio Santos, tornou-se protagonista na mídia.

Os relatos feitos por colegas e pela mídia em geral mostraram que o locutor, que mantinha o rosto anônimo para milhões de brasileiros, era, no dia-a-dia, o oposto do modo como conquistou o reconhecimento. Amigo de Sílvio, Lombardi funcionava como consultor, indicando – e explicando as razões – sobre contratações.

Nos bastidores, era reconhecido e respeitado pelos colegas de TV. Dizem que Sílvio não começava o programa sem ter a certeza da presença de Lombardi atrás dos palcos, tamanha a confiança que depositava no trabalho do amigo.

E o locutor, sabiamente, fazia questão de manter o rosto escondido das câmeras para personalizar ainda mais o trabalho que desenvolvia.

Lombardi foi o exemplo de como se deve atuar um funcionário dentro da engrenagem de uma empresa.

Ele sabia que não era o protagonista, mas tinha ciência da importância de sua atuação no SBT – talvez, até, nem dimensionava o alcance de sua voz.

Com o passar do tempo, acumulou mais que a simples função de locutor, tendo a opinião respeitada por todos os colegas.

Ao contrário do que muitos fazem, Lombardi não quis o protagonismo baseado no "aparecer". Construiu sua sólida carreira e conquistou espaço anonimamente ao longo dos anos.

Soube traçar, de maneira discreta, um caminho no mundo nada fácil da TV, onde a competição é grande, e a vontade de protagonizar confunde-se, muitas vezes, em sobrepor-se ao outro.

Numa empresa, há necessidade constante da compreensão do funcionamento da engrenagem. O que importa, geralmente, é o produto final, e a disposição de cada um para, em seu posto, contribuir de modo eficaz e eficiente para a qualidade desse produto.

Quem entender esse mecanismo tem grandes chances de sobreviver e crescer em qualquer função, em qualquer segmento.